10 de maio de 2011

Cachoeira do Arari – viemos para o que interessa

Cachoeira do Arari me reservou todas essas surpresas que relatei, mas de fato fui investigar o uso do tucumã na cozinha tradicional da região, mais precisamente a cãnhapira, prato que utiliza o vinho do tucumã cozido com carne de porco ou carne de vaca.
Chegando lá encontrei as senhorinhas fazendo uso do tucumã na doçaria: pudim, chocolate recheado, geleia, compota, mousse, um monte de coisas além do vinho¹ do tucumã com jenipapo, que é o tradicional refresco da época de inverno² no Marajó. Muito gostoso, pena que somente os mais velhos se lembram disso, senti que a nova geração não dá muito valor às coisas da terra, praticamente todos se admiravam quando eu falava que tinha ido para conhecer o tucumã e seu uso tradicional  em Cachoeira do Arari.
Haveria um festival do tucumã nos dias 14 e 15 de Abril, uma quinta e sexta feira. Eu liguei de São Paulo para confirmar e deixei claro para o coordenador de cultura do município que iria especificamente para o festival. Ainda perguntei se ele tinha certeza, já que era uma quinta e uma sexta feira. O “festival” acabou acontecendo no dia 17, domingo, junto com o bingo organizado para angariar fundos para a igreja de Cachoeira. As duas senhorinhas que entrevistei durante os dias 14, 15 e 16, foram com sua doceria feita de tucumã e sua cãnhapira de porco e de boi, vender porções na quadra de esportes da cidade. Pouca gente viu e comprou, elas disseram que para o ano que vem não farão mais seus quitutes para vender, pois o festival foi muito mal organizado e mal divulgado, ninguém ficou sabendo e elas tiveram prejuízo, já que a uma grande empresa de cosméticos compra o tucumã da região e o produto encareceu muito. “Uma coisa que se achava no mato agora custa dez reais o saco”, me contou dona Madalena que já participa do festival do tucumã organizado pela prefeitura há 14 anos.
E assim, a iniciativa dos grandes empresários aliada ao árduo trabalho governamental, acaba com mais uma tradição da Ilha do Marajó. Bravo!

¹vinho: no Pará, ao suco das frutas dá-se o nome de “vinho”. Outro nome engraçado é o do chope, que não tem nada de chope além de ser gelado, ele é o nosso geladinho aqui no Sudeste, suco de fruta dentro de um saquinho cilíndrico congelado.
² inverno: meses entre dezembro e maio que têm muita chuva e o clima é menos quente, não chega aos 40°C como nos outros meses.



Receita do vinho: Bater um pouco de tucumã no pilão com um jenipapo, passar essa mistura para um pote maior e colocar água, depois coar a mistura. Toma-se uma polpa bem grossa, normalmente com farinha d'água.

6 de maio de 2011

Cachoeira do Arari - surpresas boas

Dilermano, de Salvaterra, além de me apresentar a Wal que me hospedou em Soure, indicou que eu procurasse Maria Luiza e Hugo Martinez em Cachoeira do Arari. Fiz alguns amigos no ônibus, o tal Búfalo do Marajó, e foi bem fácil, com a ajuda de uma das meninas que conheci, chegar à fazendola, casa que faz parte do museu do Marajó e em que mora um dos maiores luthiers da América Latina e sua esposa. Daí a cabeça quase dá um nó: Hugo Martinez em Cachoeira do Arari... O que raios ele está fazendo aqui?

A história é boa: eles se mudaram do Rio para Santarém atrás de um local mais acessível para comprar madeira para confecção dos instrumentos e pesquisar sobre as madeiras amazônicas. Ele deu aulas de lutheria lá e ela criou um projeto que se chama “floresta fashion” usando borracha e fibras vegetais para fazer todo o tipo de utensílio de moda, sapatos, bolsas, bijuterias, chapéus e afins. Uma peça mais incrível que a outra!

A parte triste é que eles não conseguiram trabalhar lá por conta da politicagem do pedaço. Pra começar Hugo teve muita dificuldade em comprar madeira, basicamente nada era legal, não existe extração de madeira replantada e o que sobrava dos cortes, e seria mais que suficiente para ele trabalhar, era queimado para “apagar” a ilegalidade. Com Maria Luiza a coisa foi mais longe, ela nem se quer conseguia chegar aos locais para extração dos materiais, nem mesmo para conversar com as comunidades que seriam fornecedoras diretas de matéria-prima por conta da politicagem das ONGs locais, que ao contrário do que se divulga pela internet, não tem nada de europeias ou norte americanas, são mesmo é paulistas e cariocas, bem brasileiras, dando um jeitinho de extorquir tudo que podem e evitar qualquer trabalho honesto com a comunidade local.

Diante disso resolveram mudar-se para Cachoeira do Arari, sob o convite ainda da gestão de 2009 para montar uma escola de lutheria filiada à escola de música do Museu do Marajó. Então com a reviravolta na direção do museu e o desvio de verba eles acabaram ficando de mãos atadas, sem verba para o projeto. Hugo tem todo um estudo para trabalhar apenas com madeira das árvores amazônicas, foram anos de pesquisa aliada a órgãos como INPA e EMBRAPA enquanto estiveram em Santarém e ele já agilizou o projeto da escola de lutheria por outro caminho, sem ser atrelada ao museu. Em breve eles terão internet lá e ficarei sabendo mais informações.

Por hora fica só uma foto nossa:

E pra quem quiser comprar um violão, ou até uma viola (ultimamente ele tem estudado viola), deixe o e-mail num palpite aí embaixo que eu retorno com os números de celular, porque lá a internet é movida a búfalo!



3 de maio de 2011

Cachoeira do Arari - búfalo econômico

Lendo este blog você pode achar que um dia eu estava em Soure e no dia seguinte acordei em Cachoeira do Arari, o que não é nem perto da verdade.
Embarquei na balsa para o porto do Camará quinze para às sete da manhã, afim de tomar uma van que me disseram sair às 7h20. Mas como sempre no Pará uns dizem uma coisa, outros dizem outra e outros dizem que não é nada disso, é aquele outro. A ideia era sair cedinho e pegar a tal van, que disseram uns, já tinha ido; e disseram outros, não vinha hoje se não apareceu até agora; e outros ainda disseram que ela não existe. Diante disso, fui atrás da única informação que mais de três pessoas haviam me dado: às nove horas do Camará sai o Búfalo.

O Búfalo é um ônibus desses de linha que tínhamos em São Paulo em 1990, os bancos são de plástico e chacoalha tanto que parece que vai desmontar. Depois de duas horas de espera, lá fui eu embarcar no “Búfalo do Marajó” - assim dizia o resto de tinta na lateral.
Pra andar 61 quilômetros, do porto do Camará em Salvaterra até Cachoeira do Arari, “de Búfalo” levei (com uma mala de 18 quilos no colo, sem outro espaço para ela) quatro horas de viagem. Pior é que tive sorte, eu consegui sentar, imagine eu em pé, por quatro horas dentro do ônibus e uma mochila de 18 quilos?!
Nessa hora me lembrei das reclamações sobre a classe econômica que ouvi recentemente, pensando no quão imbecis são essas pessoas que reclamam de viajar milhares de quilômetros em poucas horas no ar condicionado... Então resolvi não reclamar do Búfalo, sempre pode ser pior, poderia não existir nem aquele ônibus, nem mesmo aquela estrada de terra! Cheguei à Cachoeira do Arari às 13h10, sã e salva, e é isso que importa. O que raios fui fazer em Cachoeira do Arari? Além do Museu do Marajó que fica lá (post abaixo) fui investigar o uso do tucumã na alimentação tradicional local.

Cachoeira do Arari – Museu do Marajó

Além de exibir toda essa beleza exótica e sabores incomparáveis, a Ilha do Marajó é também o local com a maior concentração de possíveis campos arqueológicos do Brasil. Basicamente, ninguém no Marajó reforma a casa sem achar restos de cerâmica indígena, que variam de tempos modernos há 1200 anos a.C., parece brincadeira mas não é, basta cavar um buraco raso para achar restos das civilizações que viveram ali. Cálculos dos arqueólogos apontam mais de 100 mil habitantes na ilha em seu apogeu e um resumo incrível de tudo isso está apodrecendo na cidade de Cachoeira do Arari. É um museu interativo, feito em madeira, num estilo caboclo, idealizado e criado pelo Pe. Giovanni Gallo, o Museu do Marajó

Em visita ao museu arrastei inúmeras estantes com objetos de cerâmica indígena entre outros artefatos tentando salvá-los das goteiras, ou melhor, cachoeiras que começaram a cair com a chuva que se iniciou quando entrei. Desesperada e pedindo ajuda do funcionário que me recebia, tentava arrastar as coisas para os vãos ainda sem goteiras do galpão. O funcionário dizia que não adiantava muito, porque se a chuva aumentasse parte dos móveis que mudamos de lugar se molhariam da mesma forma. Dito e feito, minutos depois até guardei a câmera que usava para fotografar uma parte do acervo e chorei, como a água que vertia para dentro daquele espaço . Chorei por presenciar a invasão dos cupins e morcegos no museu que um dia foi tão cuidado pelo padre, um museu lindíssimo, planejado para receber e ensinar tanto o estrangeiro pós graduado, quanto o visitante caboclo que quisesse saber mais sobre seus ancestrais. O que presenciei ali é um crime contra a humanidade e os criminosos estão soltos usufruindo do dinheiro roubado, no bem bom em Belém do Pará.

Pelo que entendi, em 2009 assumiu uma nova direção que, além roubar 130 mil reais dos fundos de auxílio internacionais destinados ao museu, deixaram o museu à mercê do clima amazônico, sem o menor cuidado, e afastaram funcionários de confiança do padre que trabalharam lá pela vida toda. O resultado foi catastrófico: dois anos depois muitos dos registros do padre estavam apodrecidos e a casinha onde ele viveu, totalmente destruída pela falta de cuidado. Muitos dos registros dele e muitos dos livros da biblioteca sumiram, outros tantos apodreceram a ponto dos funcionários de confiança do Padre serem obrigados a jogar tudo fora. O cupim tomou conta dos tapumes de madeira e outros objetos criados pelo padre para dar um ar bem caboclo ao museu interativo, tudo gira, vira e roda com as informações sobre as civilizações que lá viveram. “Não havia como resgatar”, me contou Zezé, que hoje tomou a frente do museu e estava de lenço na cabeça, faxinando e organizando, quando estive lá no segundo dia. Os antigos funcionários do museu, que eram de confiança do padre, hoje se juntaram e tentam salvar o que ainda dá para ser resgatado. Porém, com o caixa negativo (a antiga direção deixou 16 mil reais de dívida para beneficiar empresas de amigos e parentes, um dos absurdos foi mudar o esquema de fornecimento de energia que cobrava pelo que o museu gastava para um fixo de quatro mil reais por mês, sendo que o museu pagava uma conta de 300 reais por mês), é uma tarefa hercúlea levantar o local.

Quando penso no museu me lembro daquela musica: “tristeza não tem fim, felicidade sim...”, mas me parece que o que não tem fim é mesmo a corrupção.

2 de maio de 2011

Ilha do Marajó, Soure - Delícias de Nalva

Dilermano, o simpaticíssimo professor de dança de Salvaterra, me apresentou a uma amiga que poderia me hospedar em Soure, e lá fui eu, com a maior cara de pau para casa da Wal, uma pessoa ótima, com um bom humor incrível, como a maioria dos parauaras que conheci.

Corremos aquela Soure toda de bicicleta, ela tinha uma bike encostada em casa e visitamos a Fazenda São Jerônimo, fomos à propriedade do Sr. Peua que aprendeu a fazer queijos com a bisavó e me vendeu um dos queijos mais incríveis que comi, depois jantamos dois dias seguidos na casa de Dona Ionalva, que recebe seus comensais em mesas em frente à sua sala de estar e nos contou porque o seu pequeno restaurante se chama “Delícias de Nalva”, nome que faz jus ao que se come. Até as batatas fritas dela eram as mais gostosas que já provei na vida!!
Dona Ionalva foi super solícita e sorridente, me passou várias de suas receitas tradicionais, ensinou truques que aprendeu com sua mãe e sua avó: os deliciosos segredos da cozinha marajoara. Ainda por cima, me deu seus telefones e insistiu para que eu ligasse se tivesse qualquer dúvida.

Seu restaurante já foi visitado por ilustres personalidades, inclusive a família Kennedy, que almoçou e jantou no “Delícias de Nalva” todos os dias durante a semana de estadia em Soure. O último convite feito à Dona Nalva foi para cozinhar por um mês num restaurante em Londres, mas ela não aceitou, pois acha que não conseguiria ficar tanto tempo longe de sua família e de sua cozinha. Atualmente, ela escreve um livro de receitas e lendas marajoaras, cada lenda abre caminho pra uma de suas receitas, ela faz parte do CPOEMA , mas disse que ainda não sabe como irá publicar.

O telefone celular de Dona Ionalva quando toca soa “I Will Survive”, e ela serve o licor antes da refeição, conta que por causa de uma enrolação das mucamas que estavam atrasadas com o jantar, serviu-se o licor antes da refeição dizendo que é tradição marajoara e a partir de então passou-se a tomar o licor antes das refeições na Ilha do Marajó. Ela mesma faz seus licores das frutas locais, e não preciso dizer que são deliciosos, não é?

No primeiro dia em seu restaurante eu e Wal comemos o “banquete marajoara”. Depois do licor ela nos serviu uma casquinha de caranguejo maravilhosamente suculenta coberta com uma farofa mais que crocante, uma coisa incrível. Depois veio um arroz soltinho, com peixe no molho de caranguejo, uma fritada de camarão e uma farofa com castanha do Pará. Honestamente, não sei como traduzir em palavras esses sabores tão incríveis que ela tira dos ingredientes. Então, quando eu já estava quase ajoelhada reverenciando Dona Ionalva, ela me veio com um filé de Búfalo coberto com queijo do Marajó, batatas e bananas fritas. Tudo acompanhado de um delicioso suco de bacuri e arrematado com um pudim de leite de búfala com compota de cupuaçu. Saí em êxtase, foi uma das melhores refeições que fiz na vida, e ainda por cima custou 25 reais por pessoa! Marquei de voltar lá no dia seguinte para comer a “galinha ao molho pardo” e a “galinha de mulher parida”, as duas feitas por encomenda. Depois dessas duas refeições e da deliciosa conversa com Dona Ionalva, decidi parar de jogar na mega sena por um bom tempo, já tive toda a sorte que poderia em alguns anos.

Ilha do Marajó, Salvaterra - caldo de turu

A Ilha do Marajó é uma região que chama atenção quando se pesquisa qualquer assunto no Pará. Pode-se dizer que ela é um resumo das micro regiões da Amazônia Paraense, tem praias de rio, praias de mar, igarapés, mangues, campos alagados, terra firme, lagos, cachoeiras...Um paraíso esquecido pelos governantes e saqueado por qualquer um que tenha interesse em lucrar através do tráfico, seja de animais silvestres, madeira, peças arqueológicas ou até crianças.

Fui num barco menos confortável do que da última vez, os bancos eram para uma pessoa e rígidos, ou seja, não consegui me jogar na mochila e ficar confortável, como são apenas três horas de viagem, não me importei. Lá pelas tantas o barco começou a bater muito,  estávamos mais ou menos no meio da viagem e a maré estava um pouco revolta, enjoei de ficar sentada e fui à proa ver a ilha se aproximar, comecei a conversar com umas pessoas que estavam ali olhando aquele mundo de água.

O paraense, no geral, é um sujeito incrivelmente sociável e amoroso, mal te conhece e já te trata como se fosse um amigo de infância! No fim das contas fui parar na casa dos pais do Gilmar, que conheci na proa do barco. Fui muito bem recebida, com um gancho para minha rede num quarto só meu; assim passei a primeira noite em Salvaterra, um dos 16 municípios da grande ilha. Gilmar me apresentou a um fisioterapeuta que depois do trabalho no posto de saúde de Salvaterra, se dedica a aulas de dança para comunidade local, seu nome é Dilermano. A última coisa que eu esperava nesta vida era fazer minha primeira aula de dança de salão na Ilha do Marajó, mas foi exatamente isso o que aconteceu. Porém, minha ida à Salvaterra tinha um único intuito: conhecer a iguaria local, o Turu.

O Turu é um molusco que nasce dentro das madeiras mortas repousadas nos manguezais da região, é considerado o viagra do caboclo. Tem a fama de levantar até defunto e, preconceitos a parte (por conta da sua aparência vermiforme), é uma delícia, pude comprovar.

No dia seguinte, fiz numa longa caminhada pelos manguezais atrás do tal turu, que até então nunca tinha comido e nem sequer visto. Me atolei até os joelhos na lama, tomei muito sol na cabeça a manhã toda e ao final do “passeio” tomei uma chuva daquelas bem amazônicas - parece que São Pedro resolveu esvaziar a Regan. Estava exausta, molhada e frustrada. Meu plano B era chorar as mágoas com meu contato na Pousada do Guarás, o chefe de cozinha Roberto Carvalho, e ver se ele conseguia alguém com mais experiência e mais capaz pra achar os tão falados turus. Muito simpático, Roberto me surpreendeu com um quilo de turus que ele havia encomendado um dia antes quando liguei avisando que iria à Salvaterra. Na hora ele já aprontou a “mise em place” para que eu pudesse fotografar e me ensinou a fazer o caldo do turu como os caboclos marajoaras. Deu-me para comer o turu in natura, que se come como as ostras: limão, sal e pimenta. Minutos depois eu me sentia pronta para outra “caçada aos turus” nos mangues de Salvaterra, mas fui direto arrumar as malas. Terminado o aprendizado com o Turu, era hora de seguir em frente com algumas dicas que tinha em outro município: Soure, a capital da Ilha.

Belém pela quarta vez


Pela primeira vez pude ver a imagem da qual todo paraense se orgulha: Belém da janela do avião . Sempre ouvi dizer que era lindo ver a cidade no meio da mata, mas eu sempre chego com chuva e muita chuva. Meu voo chega às 14h30, quando não atrasa, e essa é a hora em que Belém está recebendo aquela refrescada mais que merecida. Dessa vez a chuva tinha parado quando o avião em que eu estava sobrevoou a Baia de Guajará, e pude ver com meus próprios óculos a cidade brotando da mata, uma visão linda mesmo, como se Belém fosse uma ilha de edifícios de concreto no meio de uma imensidão verde recortada pelos braços de rios de "águas brancas" da bacia do Guajará. Encontrei alguns amigos, brindamos com chope gelado da Cerpa e no dia seguinte, embarquei para a Ilha do Marajó.

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